
Introdução
O uso de medicamentos que reduzem os efeitos dos andrógenos — conhecidos como antiandrogênicos — é uma parte importante da terapia hormonal de afirmação de gênero em mulheres trans. Entre as opções disponíveis, surgem dúvidas frequentes sobre a finasterida e a dutasterida, dois fármacos originalmente desenvolvidos para tratar alopecia androgenética (queda de cabelo) e hiperplasia prostática benigna.
Mas será que essas medicações podem realmente atuar como bloqueadores hormonais no processo de hormonização?
E, mais importante: qual é o papel delas segundo as principais diretrizes nacionais e internacionais de cuidado à população trans?
Como a finasterida e a dutasterida atuam
Tanto a finasterida quanto a dutasterida pertencem a uma classe de medicamentos que inibem a enzima 5-alfa-redutase. Essa enzima converte a testosterona em diidrotestosterona (DHT), um metabólito biologicamente mais potente, responsável por características como oleosidade da pele, acne, crescimento de pelos corporais e queda capilar de padrão masculino.
Ao bloquear essa conversão, essas medicações diminuem os níveis de DHT, o que pode suavizar alguns efeitos androgênicos periféricos. No entanto, elas não reduzem significativamente os níveis totais de testosterona circulante, pois não atuam diretamente nas gônadas nem interferem na produção central do hormônio.
Em outras palavras, finasterida e dutasterida diminuem parte dos efeitos da testosterona, mas não bloqueiam sua produção. Essa distinção é essencial para entender por que essas substâncias não são consideradas antiandrogênicos principais nas terapias de hormonização afirmativa.
O que dizem as diretrizes brasileiras e internacionais
Segundo o documento “Telecondutas: Atendimento às Pessoas Transexuais e Travestis na Atenção Primária à Saúde”, elaborado pelo TelessaúdeRS-UFRGS (2022), o uso de finasterida (1 mg ou 5 mg) ou dutasterida não é recomendado de rotina como parte do tratamento hormonal de mulheres trans.
O material destaca que essas medicações podem ser utilizadas de forma adjuvante, especialmente em casos de alopecia androgenética ou quando há contraindicação ao uso de antiandrogênicos mais potentes, como ciproterona ou espironolactona.
O documento também reforça a necessidade de monitoramento clínico e laboratorial em pacientes que utilizam esses fármacos, já que há relatos de efeitos colaterais como diminuição da libido, alterações de humor e sintomas depressivos.
Na esfera internacional, as “Standards of Care for the Health of Transgender and Gender Diverse People — SOC8”, publicadas pela World Professional Association for Transgender Health (WPATH, 2022), fazem a mesma ressalva: finasterida e dutasterida não devem substituir os antiandrogênicos de ação central, sendo indicadas apenas como tratamento complementar em contextos específicos.
No Brasil, o Protocolo de Atenção Integral à Saúde da População Trans da Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo (2021) segue a mesma linha, descrevendo a finasterida e a dutasterida como opções adicionais, voltadas para o controle da pilificação e melhora estética, nunca como terapia de bloqueio principal. O documento enfatiza que o tratamento deve ser individualizado e supervisionado por profissionais qualificados.
Implicações clínicas e práticas
Na prática, isso significa que a finasterida e a dutasterida não substituem os bloqueadores androgênicos usados na terapia hormonal de mulheres trans, como a ciproterona e a espironolactona. Seu papel é complementar, podendo oferecer benefícios cosméticos e de bem-estar, especialmente em relação à redução da queda de cabelo e à suavização da textura da pele.
Por outro lado, seu uso deve ser avaliado com cautela, principalmente em pessoas com histórico de depressão, baixa libido ou outras condições sensíveis aos níveis de DHT. Além disso, o uso isolado dessas substâncias não é capaz de promover feminização significativa, o que reforça sua limitação como bloqueadores hormonais.
Conclusão
A finasterida e a dutasterida não devem ser utilizadas como antiandrogênicos principais na terapia hormonal de mulheres trans.
Elas podem ter papel coadjuvante, especialmente em casos de alopecia androgenética ou em situações específicas em que o uso de outros bloqueadores seja contraindicado. As principais diretrizes — TelessaúdeRS-UFRGS, WPATH SOC8 e Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo — convergem nesse entendimento, destacando que o tratamento deve sempre ser individualizado, monitorado e baseado em evidências científicas.
Referências (ABNT NBR 6023:2018)
TELESSAÚDERS-UFRGS. Telecondutas: Atendimento às pessoas transexuais e travestis na Atenção Primária à Saúde. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2022.
WORLD PROFESSIONAL ASSOCIATION FOR TRANSGENDER HEALTH (WPATH). Standards of Care for the Health of Transgender and Gender Diverse People: Version 8 (SOC8). International Journal of Transgender Health, v. 23, suppl. 1, p. S1–S259, 2022.
SÃO PAULO (Município). Secretaria Municipal da Saúde. Protocolo de Atenção Integral à Saúde da População Trans. São Paulo: SMS-SP, 2021.