
Introdução
Este texto é uma edição revisada e ampliada do conteúdo anteriormente publicado sobre o uso do Perlutan® na hormonização de mulheres trans.
A atualização foi realizada devido à grande procura pelo tema e inclui novas informações científicas publicadas recentemente (como Ribeiro et al., 2024; Gois et al., 2024; Raja; Rubin; Moravek, 2024; Bassichetto et al., 2024), além da incorporação de protocolos e diretrizes nacionais e internacionais (SAMPATRANS, Telessaúde RS, WPATH e Endocrine Society).
O objetivo desta versão é oferecer maior embasamento técnico e clínico, permitindo uma compreensão mais clara dos riscos, limitações e alternativas seguras ao uso do Perlutan®.
O Perlutan® (enantato de estradiol + algestona acetofenida) é um contraceptivo injetável mensal que, embora desenvolvido para uso em mulheres cis, ainda é amplamente utilizado por mulheres trans no Brasil como parte da terapia de afirmação de gênero. No contexto da hormonização, o intervalo entre as aplicações não é rigidamente fixo em 30 dias, podendo variar conforme a resposta clínica e os objetivos do tratamento.
O protocolo SAMPATRANS, por exemplo, descreve esquemas de uso adaptados à população trans, que podem prever aplicações em intervalos de 21 a 30 dias, sempre com acompanhamento médico.
motivo principal é o baixo custo — em torno de R$ 35,00 a R$ 55,00 por ampola em 2025 — e a facilidade de acesso em farmácias. Porém, apesar da popularidade, trata-se de um medicamento não indicado para hormonização de mulheres trans, segundo as principais diretrizes internacionais (WPATH, 2022; Hembree et al., 2017; TelessaúdeRS, 2023).
O que é o Perlutan®?
O Perlutan® combina dois hormônios:
Enantato de Estradiol (10 mg): estrogênio bioidêntico. Possui meia-vida de aproximadamente 4 a 5 dias, com liberação do hormônio por até 14 dias após a aplicação (Hembree et al., 2017).
Algesterona Acetofenida (150 mg): progestina sintética de primeira geração. Tem meia-vida longa, estimada entre 12 a 14 dias, podendo manter efeito por até 30 dias (TelessaúdeRS, 2023; Ciasca, 2021).
Esse perfil farmacocinético causa picos e quedas hormonais intensos, em contraste com os esquemas recomendados de estradiol bioidêntico oral ou transdérmico, que mantêm níveis mais estáveis.
Riscos e problemas do uso de Perlutan®
- Trombose e eventos tromboembólicos
O risco de trombose está relacionado principalmente à associação do estradiol em doses fixas e à ação pró-coagulante da algesterona. Progestinas de primeira geração, como a algesterona, aumentam fatores de coagulação hepáticos, potencializando a formação de coágulos (TelessaúdeRS, 2023; Hembree et al., 2017).
Isso significa maior probabilidade de trombose venosa profunda, embolia pulmonar e AVC (WPATH, 2022).
- Doença cardiovascular
O uso de Perlutan® está associado ao aumento do risco de hipertensão arterial, alteração do perfil lipídico (aumento de LDL e redução de HDL) e maior probabilidade de infarto.
O estrogênio em picos contribui para retenção hídrica e sobrecarga vascular.
A algesterona agrava o risco pela ação desfavorável em receptores lipídicos e pela estimulação hepática (TelessaúdeRS, 2023; Hembree et al., 2017).
- Metabolismo hepático intenso
Ambos os componentes são metabolizados no fígado. O uso prolongado de Perlutan® está associado à elevação de enzimas hepáticas, maior risco de adenomas hepáticos e sobrecarga metabólica (Hembree et al., 2017; WPATH, 2022).
- Efeitos indesejáveis na feminização
Apesar do estradiol ser bioidêntico, a presença da algesterona pode reduzir a eficácia feminilizante:
Alguns estudos apontam atividade androgênica parcial de certas progestinas, o que pode atrapalhar o desenvolvimento mamário, aumentar oleosidade da pele e predispor a acne (TelessaúdeRS, 2023; WPATH, 2022).
Além disso, a variação dos níveis de estradiol dificulta a progressão contínua das características femininas.
Por que muitas ainda usam Perlutan®?
Preço acessível: até cinco vezes mais barato que esquemas de estradiol transdérmico.
Fácil acesso: vendido em qualquer farmácia sem burocracia.
Informação comunitária: muitas mulheres trans compartilham experiências de uso em grupos e redes sociais.
Apesar disso, é uma prática de risco elevado e sem respaldo científico (Cochrane, 2020).
Alternativas seguras e eficazes
As diretrizes internacionais e nacionais recomendam o uso de:
Estradiol 17β bioidêntico (oral, adesivo transdérmico ou gel), em doses ajustadas a cada paciente.
Antiandrogênicos como espironolactona ou ciproterona, fundamentais para reduzir testosterona.
Esses esquemas permitem personalização, segurança e resultados mais consistentes, com monitoramento clínico e laboratorial.
Evidência científica sobre o uso de Perlutan® (E2EN + DHPA) em pessoas trans
Ribeiro et al. (2024): único estudo clínico em mulheres trans usuárias de E2EN/DHPA. O esquema a cada ~3 semanas resultou em níveis de estradiol na faixa alvo, redução de FSH e 76% de satisfação com o desenvolvimento mamário. Entretanto, os autores reforçam que faltam evidências sobre segurança cardiovascular e risco tromboembólico, não sendo possível afirmar segurança comprovada (RIBEIRO et al., 2024).
Gois et al. (2024): estudo em modelo animal com E2EN/DHPA demonstrou aumento de gordura corporal, alterações ósseas e elevação de triglicérides. Esses resultados sugerem potenciais riscos metabólicos e reforçam a necessidade de cautela ao extrapolar para humanos (GOIS et al., 2024).
Raja; Rubin; Moravek (2024): revisão internacional de modelos animais de terapia hormonal trans.
Inclui protocolos com E2EN/DHPA e conclui que ainda há escassez de dados de segurança e fertilidade a longo prazo, não havendo comprovação de segurança (RAJA; RUBIN; MORAVEK, 2024).
Bassichetto et al. (2024): estudo epidemiológico em cinco capitais brasileiras, mostrando uso elevado de hormônios sem prescrição entre travestis e mulheres trans. Não avalia o Perlutan® isoladamente, mas ajuda a contextualizar o padrão de uso no Brasil (BASSICHETTO et al., 2024).
Diretrizes e protocolos nacionais e internacionais
SAMPATRANS (2020): reconhece o uso de Perlutan® em esquemas de 14 a 30 dias, sempre com acompanhamento clínico individualizado, sem afirmar segurança plena.
Telessaúde RS (2022): adota posição restritiva, não recomendando o uso rotineiro de Perlutan®, priorizando alternativas com maior evidência de segurança.
WPATH – SOC8 (2022): não recomenda o uso rotineiro de progestágenos, como o DHPA presente no Perlutan®, devido a benefícios incertos e riscos potenciais.
Endocrine Society (2017): prioriza estradiol bioidêntico (oral, transdérmico ou injetável sem progestógeno) e não endossa protocolos combinados com progestágeno como o Perlutan®.
Conclusão
O Perlutan® não deve ser usado como esquema de hormonização em mulheres trans.
O enantato de estradiol tem meia-vida curta (4–5 dias) e não garante estabilidade sérica.
A algesterona acetofenida, com meia-vida longa (12–14 dias), é o principal fator de risco, associada a trombose, doença cardiovascular, metabolismo hepático intenso e efeitos indesejáveis na feminização.
Investir em terapias seguras, individualizadas e acompanhadas por profissionais especializados é investir na própria saúde e garantir uma transição mais estável e eficaz.
Referências (ABNT)
BASSICHETTO, K. C.; PINHEIRO, T. F.; BARROS, C.; FONSECA, P. A. M.; QUEIROZ, R. S. B.; SPERANDEI, S.; VERAS, M. A. S. M. Bodies of desire: use of nonprescribed hormones among transgender women and travestis in five Brazilian capitals (2019–2021). Revista Brasileira de Epidemiologia, v. 27, supl. 1, e240010.supl.1, 2024. DOI: 10.1590/1980-549720240010.supl.1.
GOIS, Í.; LICHTENECKER, D. C. K.; BESERRA, N.; CORDEIRO, E. R.; ALMEIDA, I. G.; SILVEIRA, I. B.; FERREIRA, J. G.; RODRIGUES, F. B.; CASTRO, C. H. M.; GOMES, G. N.; DIAS-DA-SILVA, M. R. Evaluating changes in body composition, bone mass, and metabolic profile in an animal model undergoing transfeminine hormone therapy and physical exercise. Clinical Nutrition ESPEN, v. 64, p. 284-289, 2024. DOI: 10.1016/j.clnesp.2024.10.150.
RAJA, N. S.; RUBIN, E. S.; MORAVEK, M. B. A Review of Animal Models Investigating the Reproductive Effects of Gender-Affirming Hormone Therapy. Journal of Clinical Medicine, v. 13, n. 4, 1183, 2024. DOI: 10.3390/jcm13041183.
RIBEIRO, C. T.; GOIS, Í.; BORGES, M. da R.; FERREIRA, L. G. A.; VASCO, M. B.; FERREIRA, J. G.; MAIA, T. C.; DIAS-DA-SILVA, M. R. Assessment of parenteral estradiol and dihydroxyprogesterone use among other feminizing regimens for transgender women: insights on satisfaction with breast development from community-based healthcare services. Annals of Medicine, v. 56, n. 1, e2406458, 2024. DOI: 10.1080/07853890.2024.2406458.
SECRETARIA MUNICIPAL DA SAÚDE DE SÃO PAULO (SMS-SP). Protocolo de Atenção à Saúde Integral de Pessoas Trans – Rede SampaTrans. São Paulo: Prefeitura de São Paulo, [2019?]. (Informação sobre a edição mais recente não confirmada pelo autor desta referência).
HEMBREE, W. C. et al. Endocrine Treatment of Gender-Dysphoric/Gender-Incongruent Persons: An Endocrine Society Clinical Practice Guideline. Journal of Clinical Endocrinology & Metabolism, v. 102, n. 11, p. 3869–3903, 2017.
WORLD PROFESSIONAL ASSOCIATION FOR TRANSGENDER HEALTH (WPATH). Standards of Care for the Health of Transgender and Gender Diverse People, Version 8. International Journal of Transgender Health, v. 23, supl. 1, p. S1–S259, 2022.
TELASSAÚDE RS – UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL. Atendimento às pessoas transexuais e travestis na Atenção Primária à Saúde. 2. ed. Porto Alegre: UFRGS, 2023.
COCHRANE COLLABORATION. Feminizing hormone therapy for transgender women: systematic review. Cochrane Database of Systematic Reviews, 2020.
CIASCA, S. Endocrinologia da Transgeneridade. São Paulo: Manole, 2021.