
Introdução
A dutasterida é um inibidor da 5α-redutase que bloqueia as isoenzimas tipos 1 e 2, reduzindo a conversão de testosterona em di-hidrotestosterona (DHT). Ao diminuir o DHT — o andrógeno com maior afinidade pelo receptor — a dutasterida é eficaz para o tratamento da alopecia androgenética (queda de cabelo androgenética) e da hiperplasia prostática benigna em homens cis. Na prática clínica, a dose mais utilizada é 0,5 mg/dia, sendo mais potente que a finasterida por atuar em mais isoformas da 5α-redutase (AL-HORANI; PATEL, 2024).
Evidência clínica em homens trans
Por muito tempo, temeu-se que bloquear a conversão da testosterona em DHT pudesse atenuar a virilização ou comprometer ganhos de força e massa magra em homens trans em terapia hormonal. Dois estudos se destacam:
Ensaio clínico randomizado, duplo-cego, controlado por placebo (GAVA et al., 2021): 16 homens trans (ovariectomizados) em uso de testosterona undecanoato intramuscular foram alocados para dutasterida 0,5 mg/dia ou placebo por 54 semanas. Ambos os grupos melhoraram força, composição corporal e perfil metabólico, sem diferenças significativas entre dutasterida e placebo, sugerindo que a inibição de DHT não comprometeu os efeitos anabólicos da testosterona durante o período estudado.
Estudo aberto com randomização de tratamento (MERIGGIOLA et al., 2008): 15 homens trans receberam testosterona isolada ou combinada a letrozol ou dutasterida 0,5 mg/dia por 54 semanas. Nesse estudo, a dutasterida reduziu DHT, mas o ganho de massa magra foi menor no grupo que utilizou o medicamento. Apesar de trazer uma hipótese sobre o papel anabólico do DHT, o estudo tinha amostra pequena e desenho aberto, limitando suas conclusões.
Em síntese, as evidências ainda são limitadas, mas existentes: o estudo mais robusto (duplo-cego) não mostrou prejuízo funcional, enquanto o estudo pioneiro (aberto) levantou dúvidas sobre ganho de massa. Portanto, a decisão clínica deve ser individualizada, considerando o equilíbrio entre os objetivos de virilização e o manejo da queda de cabelo androgenética.
Uso da dutasterida na alopecia androgenética em homens trans
Ainda não existem grandes ensaios clínicos sobre dutasterida em homens trans com alopecia androgenética. No entanto, revisões recentes em populações trans e gênero-diversas listam a dutasterida 0,5 mg/dia como opção de segunda linha, após minoxidil e finasterida (GAO et al., 2023).
Em homens cis, a evidência é robusta: metanálises e revisões mostram que dutasterida 0,5 mg/dia supera finasterida 1 mg/dia no aumento da densidade capilar em 24 semanas, sem aumento relevante de eventos adversos (GUPTA; TALUKDER; WILLIAMS, 2022). Esse dado costuma ser extrapolado com cautela para o cuidado de homens trans.
É fundamental considerar que a alopecia androgenética pode causar sofrimento com a identidade de gênero em alguns homens trans. Assim, o tratamento da queda de cabelo não deve ser visto apenas como questão estética, mas como parte do cuidado afirmativo integral, com impacto direto na saúde mental e no bem-estar.
Segurança, interações e pontos de atenção
Efeitos adversos sexuais: relatos em homens cis descrevem possíveis efeitos sobre libido e função erétil. A frequência exata é variável, reforçando a necessidade de aconselhamento prévio e monitoramento (GUPTA; TALUKDER; WILLIAMS, 2022).
Fertilidade/teratogenicidade: inibidores da 5α-redutase são contraindicados na gestação. Para homens trans com potencial reprodutivo ou parceiros com potencial gestacional, deve-se discutir contracepção e planejamento familiar (AL-HORANI; PATEL, 2024).
Interações medicamentosas: diretrizes do NYSDOH (2024) indicam que inibidores da 5α-redutase podem ter aumento de níveis séricos em esquemas de TARV com inibidores potentes da CYP3A4, como o cobicistate. Embora o impacto clínico seja geralmente pequeno, recomenda-se monitorização.
Monitorização clínica: revisar periodicamente os objetivos de masculinização, avaliar a evolução da queda de cabelo androgenética e acompanhar possíveis efeitos adversos. O cuidado deve ser multiprofissional e integrado (GAO et al., 2023).
Caminho prático para o manejo clínico
Educação prévia: discutir risco da alopecia androgenética antes e durante a terapia com testosterona (DEUTSCH, 2022).
Primeira linha: minoxidil tópico 5%. Considerar finasterida 1 mg/dia se a masculinização principal já estiver consolidada e houver progressão da queda de cabelo (GAO et al., 2023).
Segunda linha: dutasterida 0,5 mg/dia em casos de falha ou intolerância, com aconselhamento sobre potenciais efeitos adversos e reavaliação a cada 6–12 meses (GUPTA; TALUKDER; WILLIAMS, 2022).
Integração de cuidados:manter diálogo entre os profissionais de saúde envolvidos no cuidado trans para alinhar o controle da alopecia androgenética com os objetivos de masculinização (GAO et al., 2023)
Conclusão
Há evidência publicada sobre dutasterida em homens trans. O melhor estudo disponível (GAVA et al., 2021) mostrou que a adição de dutasterida 0,5 mg/dia à testosterona não comprometeu ganhos de força ou composição corporal em 54 semanas. Já a experiência clínica com alopecia androgenética se baseia em extrapolações de homens cis, mas revisões específicas em populações trans reconhecem a dutasterida como opção válida de segunda linha.
Mais do que um tratamento capilar, seu uso pode ser relevante na redução do sofrimento relacionado à identidade de gênero causado pela queda de cabelo, reforçando a necessidade de abordagens individualizadas, seguras e afirmativas.
Referências (ABNT)
AL-HORANI, R. A.; PATEL, P. Dutasteride. In: StatPearls. Treasure Island (FL): StatPearls Publishing, 2024.
DEUTSCH, M. B. (Ed.). Guidelines for the Primary and Gender-Affirming Care of Transgender and Gender Nonbinary People. 3. ed. San Francisco: University of California, San Francisco, 2022.
GAO, J. L.; STREED JR., C. G.; THOMPSON, J.; DOMMASCH, E. D.; PEEBLES, J. K. Androgenetic alopecia in transgender and gender diverse populations: A review of therapeutics. Journal of the American Academy of Dermatology, v. 89, n. 4, p. 774-783, 2023.
GAVA, G.; MERIGGIOLA, M. C.; et al. A randomized double-blind placebo-controlled pilot trial on the effects of testosterone undecanoate plus dutasteride or placebo on muscle strength, body composition, and metabolic profile in transmen. The Journal of Sexual Medicine, v. 18, n. 3, p. 646-655, 2021.
GUPTA, A. K.; TALUKDER, M.; WILLIAMS, G. Comparison of oral minoxidil, finasteride, and dutasteride for treating androgenetic alopecia. Journal of Dermatological Treatment, v. 33, n. 7, p. 2946-2962, 2022.
MERIGGIOLA, M. C.; ARMILLOTTA, F.; COSTANTINO, A.; et al. Effects of testosterone undecanoate administered alone or in combination with letrozole or dutasteride in female-to-male transsexuals. Journal of Sexual Medicine, v. 5, n. 10, p. 2442-2453, 2008.
NEW YORK STATE DEPARTMENT OF HEALTH AIDS INSTITUTE (NYSDOH-AI). ART Drug-Drug Interactions — Table 48: Gender-Affirming Hormones. New York: NYSDOH, 2024.